terça-feira, 31 de março de 2009

GRANDE QUALIDADE DE VIDA - JOÃO UBALDO RIBEIRO

> Grande qualidade de vida
>
> João Ubaldo Ribeiro
>
> Antigamente, não havia qualidade de vida. Quer dizer, não se falava
> em qualidade de vida. Agora só se fala em qualidade de vida e, em
> matéria de qualidade de vida, sou um dos sujeitos mais ameaçados que
> conheço. Na verdade, me dizem que venho experimentando uma
> considerável melhora de qualidade de vida, mas tenho algumas dúvidas.
> Minha qualidade de vida, na minha modesta opinião pessoal, não tem
> melhorado essas coisas todas, com as providências que me fazem tomar
> e as violências que sou obrigado a cometer contra mim mesmo.
> Geralmente suporto bem conversas sobre qualidade de vida, mas tendo
> cada vez mais a retirar-me do círculo ou recinto onde me encontro,
> quando começam a falar nela.
> A comida mesmo me faz estar considerando, no momento, comprar uma
> balança de precisão e um computador de bolso com um programa
> alimentar especial. Antes eu comia do que gostava. Fui criado, por
> exemplo, com comida frita na banha de porco ou, mais tarde, na
> gordura de coco. Meus avós, todos mortos depois dos noventa (com
> exceção do que só comia o saudabilíssimo azeite de oliva — e ele
> morreu de AVC) comiam banha de porco e torresmo regularmente, mas,
> claro, ainda não tinha sido informados de que se tratava de prática
> mortal. Aliás, comida saudável, que se ensinava nos manuais até para
> crianças, era composta de leite integral, ovos, pão (com manteiga),
> carne vermelha ou peixe — frito, então, era uma maravilha para
> estômagos delicados — frutas e legumes à vontade.
> Depois disso, até atingirmos a atual qualidade de vida, fulminaram o
> leite. Alimento completo, passou a ser encarado com desconfiança, e
> hoje não sei de ninguém que beba leite integral, a não ser, talvez,
> algum gorila do Zoológico. O ovo sofreu ataque violentíssimo, assim
> como o açúcar, a ponto de, tenho certeza, várias receitas
> tradicionais de doces serem hoje achados arqueológicos, e as poucas
> que restam constituam uma imitação desenxabida das que empregavam
> ingredientes normais e não essas massas e líquidos insossos que vivem
> distribuindo, como leite, manteiga etc. Claro, mudaram de idéia a
> respeito do ovo recentemente, mas a mudança de idéias deles só pode
> ser vista com desconfiança.
> Não houve o tempo, e não é preciso ser nenhum Matusalém para lembrar,
> em que para substituir a manteiga era exigida margarina, alimento
> saudabilíssimo, que não fazia nenhuma das monstruosidades operadas
> pela manteiga? O negócio era margarina e durou bastante, até que
> descobriram que margarina pode ser até pior do que manteiga. Melhor,
> na verdade, abolir manteiga inteiramente. E margarina, claro, nem
> pensar. Carne vermelha é uma abominação. Carne de porco é um terror.
> Vísceras de qualquer tipo devem ser evitadas como o diabo foge da
> cruz. Açúcar, meu Deus! Sorvete? Só para crianças, e crianças de pais
> irresponsáveis. Aliás, é um bom desafio achar algo unanimemente
> aprovado pelos nutricionistas, a não ser, tudo indica, capim.
> Mas ninguém pode viver de capim, de maneira que, relutantemente,
> deixam a gente comer uma coisinha qualquer, contanto que não
> ultrapassemos o limite de calorias e não ingiramos o proibido e,
> mesmo assim, com restrições. Peixe cozido ou grelhado, por exemplo,
> geralmente pode, mas paira sobre seu infeliz consumidor a ameaça de
> que não esteja fresco ou esteja contaminado por metais pesados e pelo
> lixo que jogam em rios e mares. Peito de frango (e eu que sou homem
> de coxas e antecoxas) também assusta, por causa dos hormônios que dão
> às galinhas e as neuroses que elas desenvolvem, nascendo sem mãe e
> sendo criadas em cubículos em que mal podem se mexer, a ponto de
> terem de ser debicadas, para não se autodevorarem histericamente. Ou
> seja, mesmo comendo um peito de galinha sem uma gota de qualquer
> gordura e acompanhado somente por matos e alguns legumes (cuidado com
> a contaminação de tomates, cenouras e alfaces!), o infeliz se
> arrisca.
> Mas vou usar o computador para calcular as calorias, as gorduras e
> outras características de cada refeição, porque, agora que minha
> qualidade de vida está melhorando a cada dia, preciso ser coerente.
> Fumar, não mais, nem uma pitadinha depois do café (que ninguém sabe
> direito se faz bem ou faz mal, temperado com adoçante, que também
> ninguém sabe se faz bem ou faz mal). Beber, esqueça, vai deixar você
> demente aos 60, além de dar cirrose e hepatite. O famoso copinho de
> vinho, além de ser uma porção ridícula, também está sendo questionado
> no momento. Parece que não é bem assim, e uma autoridade no assunto
> disse outro dia no jornal que o melhor é tomar suco de uva — não
> industrializado, é claro, por causa dos aditivos.
> Restam também os exercícios. Fico felicíssimo, quando, suando e
> bufando no calçadão, sinto o ar fresco invadir os meus pulmões
> (preferia logo uma tenda de oxigênio), as pernas doendo e a certeza
> de que minha qualidade de vida vai cada vez melhor. Até minha pressão
> arterial (13 a 14 por 8), que era considerada boa para minha idade,
> agora já é alta e o pessoal dos 12 por 8 já começa a entrar na faixa
> de risco. Enfim, é duro manter esta boa qualidade de vida, ainda mais
> agora que me anunciam que caminhadas somente não bastam, tem de
> malhar também. Ou seja, temos que nos dedicar o tempo todo a manter
> nossa qualidade de vida. Mas, aqui entre nós, se vocês no futuro
> virem um gordão tomando caldinho de feijão com torresmo no boteco,
> depois de um chopinho, e o acharem vagamente parecido comigo, talvez
> seja eu mesmo, sofrendo de uma pavorosa qualidade de vida. A
> diferença é grande. Tanto eu quanto vocês vamos morrer do mesmo
> jeito, mas vocês, depois da excelente qualidade de vida que estão
> desfrutando aí com sua rúcula com suco de brócolis, vão ter uma ótima
> qualidade de morte, falecendo em perfeita saúde e eu lá, no meu
> velório, com um sorriso obeso e contente no rosto dissoluto.
>
> Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 06/07/2003.
>
> Sds,

2 comentários:

  1. Pura realidade eu me sentia muito mais feliz, guando saia para ir a praia e levava o dinheiro da passagem e o da coca cola, era uma maravilha quequalidade de vida, tinha meus amigos e vivia a minha vida com alegria e tranquilidade, derrepente achamos que não somos felizes e vamos atrás de qualidade de vida, acabamos por voltar o que fazíamos há 40 anos, o que nos dá prazer e bem estar..

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  2. Esta crônica nos leva realmente a refletir: Como seria possível ter uma boa qualidade de vida? Na alimentação, tudo que nos recomenda, nem sempre é saudável, pois a maioria, ou todos os alimentos estão contaminados, é agrotoxico, são os aditivos, os conservantes e corantes, em fim o solo está contaminado, o ar também, quase toda a natureza. Onde é que iremos nos refugiar? Não sei!!!!

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